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24 de jun. de 2011

Agenda Cultural: "A Vida dos Outros"


Gostaria de recomendar “A Vida dos Outros” (o título original, em alemão, é “Das Leben der Anderen”), lançado em 2006, dirigido e escrito por Florian Henckel von Donnersmarck, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e de muitos outros prêmios na Alemanha e mundo afora.

“A Vida dos Outros” se passa na Alemanha Oriental ainda sob regime socialista e o protagonista, Gerd Wiesler, é um dos agentes da polícia secreta do governo (a temida Stasi) e cuja função consiste em vigiar suspeitos de “conspirar” contra o regime. A história começa quando o ministro da cultura decide vigiar o escritor Georg Dreyman, que namora a atriz Christa-Maria Sieland, por quem o ministro tem interesses sexuais. Gerd, como homem do regime, obedece sem questionar e arma câmeras pela casa de Dreyman, e começa a observar sua vida pessoal.

À medida que espia Dreyman, sua relação com Maria e com seus amigos, Gerd percebe como sua vida inteiramente dedicada ao regime é vazia, solitária e infeliz e passa a criar simpatia pelo casal, ao ponto de ajudar Fulana quando ela tem uma crise nervosa depois de ser abusada pelo ministro e se sensibilizar quando Dreyman toca uma peça ao piano – chamada “Sonata para um homem bom” – e encobrir suas conspirações contra o regime. O ator que faz o papel de Gerd, Ulrich Mühe, está absolutamente brilhante: interpretar um personagem que muda ao longo da trama é uma tarefa difícil, e Mühe deixa bem claro que está à altura do desafio.

Além de uma história excelente, há ainda pitadas de humor contra os regimes totalitários, especialmente contra o cinismo das autoridades que se vêem no direito de violar os direitos à privacidade e à liberdade do povo.

Creio que, nesse caso, contar o final do filme não vai estragar a graça de assistir a “A Vida dos Outros”, mas aqueles que não quiserem saber podem pular este parágrafo. No fim, o regime socialista é derrubado após a Queda do Muro de Berlim, e os arquivos secretos do regime são abertos a público. Sicrano, desconfiado de que fora espionado, descobre que o espião responsável por vigiá-lo, Fulano, o protegeu. Um pouco depois, Dreyman escreve um livro chamado, justamente, “Sonata para um Homem Bom”. Gerd vai comprar o livro e vê que é dedicado a ele mesmo e, quando lhe perguntam, no caixa, se quer embrulhar para presente, ele responde “Não, obrigado. É para mim.”

Eu acabei omitindo alguns detalhes – esses sim acabariam com a graça do filme -, mas espero, mais uma vez, que tenha convencido você, caro leitor, a assistir ao filme. É um tema recorrente na arte se somos de fato capazes de mudar e nos tornar pessoas melhores, e as respostas variam, mas poucas são escritas tão belamente quanto em “A Vida dos Outros”.

17 de jun. de 2011

Agenda Cultural: "O Alienista"


A maioria dos leitores deve ter ouvido falar pelo menos uma vez de “O Alienista”, uma novela de Machado de Assis, e certamente de um professor de português/literatura. É possível, no entanto, que alguém não conheça a história, de modo que não seria mau fazer um resumo.

A história se passa na em Itaguaí, na segunda metade do século XIX, e começa com um médico que toma imenso interesse pela loucura e decide, a fim de estudar e esclarecer o tema, um manicômio na cidade. Aos poucos o alienista começa a internar, de modo inocente, qualquer pessoa que tenha algum desvio comportamental – como vaidade, generosidade, covardia – até que quase toda população da cidade esteja presa. O alienista conclui, então, que não é viável que todo mundo seja louco e que uma nova teoria é necessária. A nova teoria – tão cínica quanto a primeira era ingênua – propõe que louco é aquele que não é racional, ou seja, avarento, traiçoeiro, egoísta, arrogante, vingativo, bajulador, etc. Esse trecho é uma divertida alusão de Machado de Assis a “Dom Quixote” – o cavaleiro perdido no mundo capitalista - e uma ironia ácida sobre a corrupção, se não dos brasileiros, da Humanidade.

O que Machado provavelmente quis provar – e, creio, o fez com maestria – é que a ciência falha e que, no entanto, freqüentemente cremos em suas conclusões cegamente, que é exatamente o oposto do que se propõe no método científico. O personagem que melhor ilustra o argumento é o (suposto) amigo do alienista, Crispim Soares, que é retratado como um bajulador, um covarde quando se dispara uma revolta contra o alienista e um oportunista quando sua esposa é internada.

A história é brilhante e da melhor espécie: a que faz primeiro rir e depois pensar. Eu recomendo que leiam a novela inteira (é divertidíssima), que está no livro “Papéis Avulsos” de Machado de Assis, junto a outros contos geniais. E sugiro também uma versão em quadrinhos (que foi, admito, o motivo pelo qual decidi escrever sobre “O Alienista”) desenhada pelos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, sobre quem já falei um pouco quando recomendei “Daytripper”.

3 de jun. de 2011

Agenda Cultural: "Maus"


Na edição de hoje da Agenda Cultural, gostaria de recomendar “Maus”, uma história em quadrinhos de Art Spiegelman, lançado em dois volumes (o primeiro em 1986, o segundo em 1991) e o único do gênero a receber um Prêmio Pulitzer. “Maus” – que, aliás, quer dizer “ratos” em alemão – também foi elogiado por Alan Moore (autor de “Watchmen”, “V de Vingança”, entre outros clássicos dos quadrinhos), um dos grandes nomes do ramo.

A história consiste no relato do pai de Art, Vladek, um judeu polonês que sobreviveu ao regime nazista e a Auschwitz, sobre um dos períodos mais tenebrosos da História. A trama se desenrola em duas frentes: em uma, Art retrata seu relacionamento difícil com seu pai durante as entrevistas e, na outra, o relato propriamente dito.

A primeira coisa que o leitor notará quando vir a capa é que todos personagens são representações antropomórficas de animais, cada animal representando uma nacionalidade: judeus são retratados como ratos, alemães como gatos, americanos como cães, etc. Essa metáfora visual faz com que a única distinção possível entre os personagens seja a roupa que vestem (nos trechos em que são forçados a usar uniformes, aliás, é impossível notar qualquer diferença) e reproduz visão preconceituosa propagada pelo nazismo – a de que todos os judeus são iguais entre si e não mais do que animais. É sempre doloroso ver as personagens retratadas como animais tentarem manter sua dignidade, como em um momento em que Vladek e Anja – sua esposa e mãe de Art – têm que se esconder num porão e enfrentar ratos de verdade. Algumas partes do relato são brutais – e, infelizmente, verdadeiras -, o que me obriga a dizer que o livro não é recomendado a pessoas mais sensíveis.

O homem que é entrevistado - racista, sovina, neurótico e intratável - contrasta fortemente com o Vladek das histórias, que não media esforços para resgatar sua esposa e a si mesmo. Vladek, completamente destruído, inferniza a vida de sua segunda esposa (Anja cometeu suicídio em 1968) e de seu filho com suas manias - de poupar tudo, até fósforos, e condenar qualquer gasto que considere inútil e/ou alto.

Um relato tocante sobre as vítimas do nazismo, “Maus” é também a mais poderosa crítica ao preconceito e, certamente, uma das obras-primas das histórias em quadrinhos. A história é brilhante, assim como a idéia de representar cada nação por um animal. E, embora o relato de Vladek falhe algumas vezes, uma aula de História que números, fotos e professores nunca conseguirão fazer.